V

Sambas-enredo
da cidade da Bahia

V

Registro de memórias

As antigas escolas de samba de Salvador têm passado nos últimos anos por um importante processo de redescobrimento, com artigos acadêmicos, reportagens, projetos de pesquisa e registros audiovisuais a revelar seus principais aspectos socioculturais, históricos e estéticos, marcando uma nova etapa na historiografia do Carnaval baiano. Neste processo de documentação e sistematização de informações sobre esta importante tradição carnavalesca soteropolitana, que teve seu auge entre meados dos anos 60 e o início da década de 70, entretanto, uma lacuna ainda se faz presente: destacam-se a escolas e a estrutura do Carnaval, mas pouco se fala dos sambistas e do legado por eles deixado à cultura musical da cidade. Afinal, como eram os sambas-enredo da Cidade da Bahia? Como eram suas estruturas melódicas e sobre o que versavam estes poetas?

Tal debate ganha especial relevância quando considerado o fato de que grandes nomes do samba baiano foram revelados neste contexto. Ederaldo Gentil, Nelson Rufino e Walmir Lima, por exemplo, tiveram importante atuação em escolas de samba de Salvador, emplacando diversos sambas-enredo na Avenida e chegando a gravar alguns deles. Estes poucos registros são, porém, gotas em um oceano de preciosidades musicais, ainda repousadas na memória de compositores e foliões de antigos carnavais.

O projeto “Sambas-enredo da Cidade da Bahia – Registro de Memórias”, neste sentido, vem atuar na pesquisa, na documentação e na difusão destas obras musicais, resultando no registro de sete composições inéditas, além de uma regravação, contemplando as principais escolas de samba da capital baiana. Idealizado pelo É Samba da Bahia (ÉSBA!), coletivo que atua na produção de documentários, lives e CDs, na criação de acervos digitais e na edição de livros, sempre trazendo o samba da Bahia como eixo norteador de suas ações, a empreitada contou com a direção musical do arranjador e multi-instrumentista Dudu Reis e do pesquisador e regente da Band’Aiyê (Ilê Aiyê) Mestre Mario Pam.

Além das chamadas “grandes escolas”, como Ritmistas do Samba, Juventude do Garcia, Filhos do Tororó e Diplomatas de Amaralina, foram contempladas neste trabalho outras agremiações representativas do Carnaval da cidade, como Ritmo da Liberdade, Filhos do Morro e Politeama. Nomes consagrados do samba baiano, remanescentes desta tradição, foram convidados a integrar o projeto. São eles: Walmir Lima, Edil Pacheco, Almir do Apache, Guiga de Ogum, Jorginho Commancheiro, Luiz Bacalhau, Muniz do Garcia e Paulinho do Reco. Além disso, compositores que exerceram destacada atuação no campo da criação de sambas-enredo no passado, como Edson Menezes (Ritmistas do Samba), Reginaldo Luz (Juventude do Garcia) e Salvador Oliveira (Filhos do Tororó) estão presentes na produção.

A pesquisa da sonoridade das antigas escolas de samba teve em dois antigos mestres de bateria, Zé Xexete e Gilmar Apito de Ouro, uma colaboração inestimável, ao trazer para as gravações a cadência das baterias do passado. Ritmos que ajudaram a construir esta tradição, além de outros nascidos a partir dela, também se fizeram presentes neste trabalho fonográfico. Assim, do cabila ao samba-reggae, passando pelo barravento e o samba duro, a presença destas manifestações rítmicas indicam um caminho para um questionamento natural: como seria, hoje, a musicalidade das escolas de samba de Salvador caso elas não tivessem sido extintas?

Uma possível resposta perpassa pela permanência e atualização desta sonoridade em blocos afro e de índio, além de iniciativas recentes que buscam dar continuidade a esta tradição na capital baiana, sendo as escolas de samba Filhos da Feira e Unidos de Itapuã exemplos latentes. Com efeito, o presente projeto atua no sentido de fazer com que tal linguagem musical, que permanece forte em outras regiões do país, sendo consumida de forma massiva em São Paulo e no Rio de Janeiro, seja conhecida pelas novas gerações, fortalecendo outras iniciativas de retomada desta tradição na Cidade da Bahia.

André Carvalho
Jornalista, pesquisador e produtor cultural